terça-feira, 12 de março de 2013

Patagônia Argentina - Parte1

Saímos do RJ em destino a Buenos Aires e na sequência Bariloche. O plano era passar 7 dias acampados no Vale do Frey escalando as incríveis agulhas da região.

Nosso principal objetivo era escalar a Agulha do Campanille Esloveno, localizada no Vale do Campanille, vale vizinho ao Frey. Para começar a empreitada decidimos escalar a Agulha Frey que fica logo de frente ao camping e abriga lindas vias de escalada em fendas. Sob severo frio fizemos a via ¨Sinfuentes Webber¨, clássica sequência de fendas que percorrem 4 enfiadas, sendo a última com alguns lances em agarras. Chegamos ao cume diante de um incrível visual do vale, mas muito frio decidimos descer rápido e descansar para os dias seguintes.


Bernardo "Biê" na via "Sinfuentes Weber" na Agulha Frey. Foto: Canal Off / Seblen Mantovani.

Dias bem frios acompanhados de ventos fortes e nevascas deixaram a situação bem desconfortável para escalar, mas mesmo assim seguimos para uma segunda empreitada dessa vez na Agulha La Vieja. Decidimos escalar em condições muito desgastante, temperatura abaixo de zero, vento frio constante daqueles de cortar a pele, tudo pela fissura de escalar as fissuras. Preferimos uma via que ficasse protegida do vento, já que o sol não tava dando conta do serviço. Fomos ao cume dessa agulha pela via ¨Sudafricana¨, outra escalada inacreditável em fendas e diedros perfeitos. Foram 3 enfiadas todas protegida em móvel do começo ao fim, terminamos bem desgastados mas satisfeitos por ter feito uma escalada limpa numa via toda em móvel.

O clima continuou não favorecendo, pegamos dias gélidos e fomos obrigados a descansar ainda com a esperança de que o tempo fosse limpar antes de termos que ir embora, pois nosso objetivo principal ainda não estava concluído.


No cume da agulha La Vieja. Foto: Canal Off / Seblen Mantovani.

Finalmente no nosso último dia de viagem o tempo abriu, acordamos logo cedo e partimos em direção ao Vale do Campanille Esloveno para escalar a Agulha do Campanille pela via "Imaginate", mas no fim decidimos mudar para a via "Founrouge-Bertoncelj" que fica protegida do vento oeste que soprava forte nesse dia. Uma trilha que dura cerca de 3h, passando por paisagens maravilhosas pelo vale do Frey e o vale do Campanille, num misto de cascalho e neve que nos leva até a base da agulha. Esse seria o ataque final, pois já não nos sobrava nenhuma comida além da que levamos para a parede.

Num dia ensolarado mas com o vento oeste muito forte, fizemos a melhor decisão de trocar uma via que ficaria exposta o tempo todo ao vento por uma via totalmente protegida dele. Fizemos uma das melhores escaladas da região, apesar de não conseguir nos livrar do intenso frio - o que nos desgastou bastante - subimos as 4 enfiadas em um tempo considerado razoável, emendando a 2a e a 3a enfiada que segue por um inacreditável diedro perfeito, todo em proteção móvel. Voltamos ainda com a luz do dia para a barraca, fechando com chave de ouro nossa curta semana no vale do Frey.



Silvio Neto na via "Founrouge-Bertoncelj" agulha Campanille Esloveno. Foto: Canal Off / Seblen Mantovani.

No dia seguinte ficamos por conta do descanso, mais do que merecido, cozinhamos o pouco que restou da comida e a tarde levantamos acampamento para retornar pelos 10km de trilha até a cidade mais próxima para pegar a última condução que nos levaria de volta a cidade de Bariloche.

As semanas que seguiram foram totalmente desanimadoras. Todos os dias estávamos pendurados em frente ao computador a cada minuto rezando para que a previsão trouxesse uma luz no fim do túnel. Nossos planos estavam longe de serem possíveis devido ao clima atípico na região. Para não ficar parado começamos a busca pela motivação. Depois de meses a fio apenas escalando paredes, fomos procurar nas falésias a energia que precisávamos para manter nossas cabeças ocupadas e nossas mãos calejadas.

Começamos por um "sítio" pouco frequentado na região de Bariloche, chamado de "Piedras Blancas". Lá fomos surpreendidos por um incrível visual do Lago Nahuel Huapi e vias esportivas de diferentes características, um verdadeiro mix entre força, jeito e técnica. Um lugar sossegado, com uma atmosfera leve, perfeito para um dia de descanso ativo depois de longas caminhadas desgastantes. Fizemos um ótimo volume em vias não tão desafiadoras, mas totalmente satisfatórias e prazerosas de escalar. Vias com movimentos estéticos e linhas bonitas que levavam ao cume das pequenas torres de pedra sólida e esburacada. Foi um dia bem produtivo onde todos da equipe escalaram bastante, saímos todos muito felizes por ter conhecido um lugar tão agradável para nosso estado de espírito.

E novamente os dias seguiram horríveis, com chuva, vento e muito frio. Fizemos uma investida na falésia conhecida como "Parede Blanca", talvez uma das mais clássicas e frequentadas da região de Trébol, mas estávamos tão desanimados que nem conseguimos achar a falésia e ficamos perambulando pelas diversas trilhas que mais parecia um labirinto sem fim. Assim voltamos pra casa arrasados, escaladores experientes, vindo de atividades difíceis que exigem orientação, destreza em terrenos complexos e escaladas comprometidas, não ter conseguido achar essa falésia nesse dia chuvoso e frio foi a gota d´água. Passamos uns 2 dias enfurnados em casa até que a chuva deu uma trégua e a previsão do tempo nos agitou novamente. Era a tão esperada janela para atacar uma das mais lindas montanhas locais: o Cerro Tronador!

Logo vimos que seria uma janela curta, tínhamos 2 dias de tempo considerado bom. O primeiro seria o melhor, depois de intensa nevasca durante a semana toda o terreno estaria bem sólido e as imensas gretas cobertas de espessa camada de neve - o que nos permitiria caminhas pelo glaciar com mais segurança - ofereceriam mais agilidade em nossa investida. O segundo dia seria mais nublado e talvez até chovesse (nevasse) por lá.

Arrumamos as mochilas com todo nosso material para escalada em gelo e logo na manhã seguinte seguimos em direção a Pampa Linda, vilarejo mais próximo ao pé da montanha. De lá seguimos pelos 14km de trilha que nos leva até o refúgio Otto Meiling. Chegamos ao refúgio no final da tarde, montamos nossa barraca e discutimos sobre a melhor estratégia para a investida na montanha. Aproveitamos a presença de outros escaladores para trocar informações sobre o percurso e a melhor estratégia durante o ataque.

O Cerro Tronador é uma montanha que, apesar de não alcançar elevada altitude ao nível do mar (cerca de 3400m no seu pico mais alto) e ser uma das melhores opções para iniciar nesse tipo de escalada (em gelo), exige muita disposição e abriga perigos como qualquer outra montanha nevada. Seu cume se divide em 3, sendo o mais alto o cume central, conhecido como "Internacional". A sua direita (visto do refúgio Otto Meiling) está o cume "Argentino" e a sua esquerda o "Chileno". Essas determinações são devido a fronteira entre a Argentina e Chile que passa exatamente em cima do cume central.



Cerro Tronador (esquerda Pico Internacional, direita Pico Argentino.). Foto: globoesporte.globo.com

Ainda na primeira noite no refúgio pude entender o porque do nome da montanha. As imensas placas de gelo ao se desprenderem das encostas íngremes, lembram o barulho que os trovões fazem ao cair do céu. Sobre as "tronadas" do Cerro Tronador determinamos que seria no dia seguinte - o primeiro dia de janela dos 2 que eram previstos - o nosso tão esperado ataque ao cume. A princípio estaríamos partindo em direção ao cume "Internacional", mas como somente 2 dos 4 que formavam a equipe já estiveram ali antes, decidimos por ganhar tempo seguindo direto ao cume "Argentino" para aproveitar o dia perfeito que seria o dia seguinte.

Cochilamos por 3 horas - como de costume nessas ocasiões - e antes mesmo do despertador soar já estávamos de pé. Eram 4h da manhã quando todos estavam prontos e devidamente equipados para seguir nos 7km que nos separavam do tão esperado cume "Argentino". O dia prometia ser realmente perfeito como era previsto. Caminhamos cerca de 1h pelo glaciar até nos darmos conta de que estávamos perdidos, resolvemos voltar ao ponto onde conseguimos achar o caminho certo e seguimos confiantes rumo ao filo vieja já sob os primeiros raios de sol. Ao longe vimos os pontinhos pretos no meio da imensidão do glaciar, eram os grupos de clientes que guiados por guias profissionais estavam horas na nossa frente em direção ao cume "Argentino". Motivados pelo ótimo clima que fazia, seguimos num ritmo muito forte em direção ao filo que dá acesso a parte alta da montanha, sobe lomba, desce lombra, logo alcançamos os demais escaladores que também atacavam a montanha naquele dia. Pra nossa surpresa eram dois grupos grandes, totalizávamos 12 escaladores em fila, 3 grupos de 4 escaladores seguiam em direção ao cume "Argentino". Nesse ponto o vento já aumentava a cada minuto. Enquanto nosso grupo ultrapassava os demais na subida do filo vieja, o vento começava a se tornar um fator preocupante. A neve fofa, o sol forte e o vento fazia com que cada passo se tornasse mais difícil. Parecia que estava subindo uma duna de areia fina no deserto do Saara, só que sob temperatura negativa e ventos literalmente patagônicos. O pé entrava até quase o joelho na neve e o vento a essa altura já nos derrubava a cada rajada mais forte. A gente estava na parte mais puxada fisicamente, chegando na transição para a parte técnica da escalada, quase no colo entre o cume "Internacional" e o "Argentino", a essa altura era preciso parar para esquentar água, hidratar, comer alguma coisa e repôr as energias, mas diante de um vento patagônico que facilmente alcançava 70km/h, sem chance de abrigo, isso era impossível. Mesmo assim colamos no último grupo de escaladores e em minutos estaríamos ultrapassando eles, quando a última rajada de vento nos derrubou e com ela a chance de continuar com segurança.



Bernardo "Biê" e Silvio Neto no ataque ao Cerro Tronador. Foto: Canal Off / Seblen Mantovani.

Depois de 6h de atividade paramos para decidir o que fazer, pois estávamos para entrar num terreno mais instável onde grandes ceracs poderiam cair devido a alta temperatura que o dia ensolarado fazia, a força do vento que acentuava o perigo, juntando a isso a necessidade eminente de parar para recuperar forças enquanto nesse momento teríamos que ser rápidos. Diante dessas condições a decisão foi rápida, simplesmente demos a volta e começamos a descer. Era possível ver o cume "Argentino", a impressão era de que faltavam 200 metros de desnível, mas o vento soprava tão forte que a menor parte do corpo descoberta parecia ser dilacerada pelos flocos de neve que se desprendiam com o vento. Logo que começamos a descer cruzamos com o grupo que ultrapassamos na subida, entre uma olhada e outra para trás pude perceber que todos os outros grupos também optaram por abortar o ataque ao cume logo depois do nosso grupo resolver descer. Era nítido que as condições não estavam seguras para alcançar o cume daquela montanha.

A descida foi triste, um mix de sentimentos de alívio e fracasso tomou meu coração. Apesar de atrapalhar muito na subida, a força da gravidade e o vento ajudava na descida. O terreno já estava bem instável e algumas gretas começaram a aparecer no glaciar, mesmo assim em 2h descemos tudo o que demoramos 6h para subir. Chegamos ao meio dia na barraca, desidratados e cansados nem pensamos em mais nada a não ser dormir. Dormimos o dia inteiro e no dia seguinte arrumamos as coisas para descer os 14km que nos levariam ao ponto de onde partimos. Depois soubemos que nenhuma equipe seguiu para o cume naquele dia, o que nos trouxe a certeza de ter tomado a melhor das decisões.

Apesar de não ter tido o sucesso esperado - fazer o cume - a experiência foi enriquecedora e o aprendizado de que nem sempre ter êxito significa alcançar o objetivo inicial, mas sim continuar vivo para ter outras oportunidades!

Assim que voltamos para a cidade de Bariloche o clima voltou a piorar. Parecia que a chuva não daria trégua dessa vez. Descansamos um dia e no outro, de baixo de chuva, fomos para a região de Trébol em busca de novos desafios nas vias esportivas de "Parede Blanca". Dessa vez encontramos de primeira a charmosa falésia. Localizada num lugar bem bonito, onde se pode ver um pequeno lago abaixo e as montanhas ao fundo, impressionante pela qualidade da rocha e as diferentes inclinações. Mesmo ainda cansados fizemos o máximo possível de volume, escalando até não poder mais. Ótimo pra observar o quanto estamos preparados e como expandimos nossos limites quando precisamos. Nessa primeira visita o saldo não foi tão positivo, tentamos escalar mais do que conseguimos, mas agora sim estava pronto para mais dias de descanso.



Silvio Neto escalando as vias da Parede Blanca. Foto: Canal Off / Seblen Mantovani.

Depois de um pequeno contra tempo com uma empresa de locação de veículos, teríamos que pagar por uma reserva que não deveria ter acontecido, isso nos obrigou a partir para mais um dia de escalada sem descanso para não desperdiçar recursos. Fomos então para Villa Lanquin, um lugar totalmente diferente de todos que tinha visto até então. No meio de uma estepa, uma paisagem desértica, pedras avermelhadas que lembravam os arenitos de Utah nos EUA, situavam-se as escaldas em Villa Lanquin.


Silvio Neto e Seblen Mantovani escalando em Villa Llanquin. Foto: Canal Off / Rafaela Camacho.

Sem muitas informações, seguimos 10km por uma estrada de terra que nos levava a um lindo cânion cercado de pequenas agulhas incrivelmente fendadas. Parecia ser uma rocha frágil, mas chegando perto pudemos ver que as fendas eram sólidas e aderentes. Escolhemos uma face de uma das agulhas e abrimos uma fenda perfeita, bem provável que ninguém tenha escalado ali. Depois fomos aos boulders, perfeitos blocos de pedra alaranjados no alto de um planalto. O que mais chamou a atenção foi o silêncio e a paz do lugar, uma atmosfera muito calma. A vontade era de deitar e dormir. A sensação era de que ali foi uma região indígena, ou um lugar sagrado onde fazia-se algum tipo de ritual. As escaladas foram uma atividade à parte, pois a energia era tão contagiante que nosso grupo quase se dispersou indo cada um para um lado. Realmente um lugar especial.

Nesse dia fizemos render bastante, escalamos um pouco de tudo que o lugar tinha a oferecer. Fomos de fendas constantes, boulder e esportiva numa tacada só. Bem no final do dia tivemos uma surpresa nada agradável. Voltando os 10km de estrada de terra o distribuidor de combustível soltou uma das mangueiras  nos deixando quase sem gasolina no meio do deserto, faltando poucos minutos para sair a última balsa do dia que nos levaria ao outro lado do rio onde seria possível pegar a estrada de volta a Bariloche. Por sorte identificamos a tempo o problema e fizemos uma gambiarra que segurou o problema até a cidade. Foi um susto, mas no fim tudo deu certo.