Depois de passar um tempo no Brasil
renovamos as energias e as expectativas para voltar a Argentina. Desta vez o
destino era ao norte, perto da região da cidade de Mendoza, onde poderíamos
otimizar nosso tempo de viagem com previsão de tempo bom e temperaturas
agradáveis para escalar por mais dias.
Saindo do Rio de Janeiro fomos direto
para Mendoza. Lá aproveitamos para conhecer algumas das atrações
turísticas famosas, como as plantações
de uva e azeite, talvez as principais atividades de toda a região. Um passeio
bastante interessante onde pudemos nos aproximar da cultura local, entender
melhor sobre a importância da água e como os habitantes a utilizam em seu dia a
dia.
Ficamos na cidade tempo suficiente para
fazer as compras e organizar a logística de acordo com nossos objetivos.
Contatamos Yagua Rubens, um personagem local que faz o translado entre Tunuyam
e Cajon de Arenales, seus serviços são indispensáveis e o pouco tempo que
ficamos em sua presença foi uma experiência marcante, recheada de muitas
estórias e passatempos de sua vida.
Em Arenales ficamos acampados perto do
refúgio que servia de base para cozinhar e para os dias de chuva, que por sinal
foram totalmente atípicos para a região.
Tivemos apenas 3 dias completos de sol em
que pudemos escalar pequenas vias ao redor do refúgio e uma via de
aproximadamente 200 metros chamada "Patrícia", um verdadeiro clássico
local. Essa foi um delírio, desde fenda frontal perfeita passando por chaminé
aérea, lances em diedros e escalada técnica em agarras, praticamente toda em
móvel com algumas paradas em cantoneiras.
Silvio Neto na 1a enfiada da via "Patrícia", Cajon de Arenales. Foto: Seblen Mantovani/CanalOff..
Os dias que se seguiram foram
literalmente um desastre. Partimos para escalar a agulha Campanille Alto, uma
agulha que fica no alto do vale há aproximadamente 3h de caminhada íngreme
desde o refúgio. A via escolhida se chama "Harmonica", uma via bem
bonita, começa numa blocaria e passa por lances em fendas duplas paralelas que
vão de entalamento de dedos alargando até entalar os punhos, depois uma enfiada
de entalamento de meio corpo e blocaria até o platô da última enfiada. Diante
da última enfiada - uma fenda frontal linda - a chuva de granizo caiu com força
nos obrigando a descer de imediato, pois muitos raios caiam bem perto de nós.
Descemos até o refúgio com todo o equipamento encharcado. A noite desse dia
passamos apreensivos. Uma chuva que nunca poderíamos imaginar num local onde
todos os escaladores que conheço diziam ser um dos lugares que menos chove em
toda a Argentina.
Foram horas seguidas de chuva intensa e pesada
acompanhada de raios e trovões de deixar qualquer um acordado. Já não era
possível distinguir o som dos trovões e o dos desmoronamentos de encostas ao
redor do camping. Passamos metade da noite acordados em alerta na barraca.
Certo de que todos estavam assustados, dormi com o canivete nas mão e a
lanterna na cabeça, caso alguma coisa acontecesse meu instinto era rasgar a
barraca e correr!
Bernardo Biê e Silvio Neto em Cajon de Arenales.Foto: Seblen Mantovani/CanalOff..
No dia seguinte vimos o estrago que a
chuva causou na região. Eram blocos imensos de pedra que haviam rolado encosta
abaixo, alguns eram do tamanho de tanques de guerra, pararam apenas alguns
metros de onde estávamos acampados. O rastro dos blocos era inacreditável, o
riacho se transformou em um rio que se dividia em dois e em alguns trechos
tomava a estrada de terra que dava acesso ao local. Passamos mais dois dias sem
saber se o translado iria conseguir chegar até o ponto combinado ou se teríamos
de descer os 18km até onde o carro chegaria com tranqüilidade.
Por fim, no dia que planejamos ir embora
tudo indicava que seria um ótimo dia de escalada. Aproveitamos a informação de que dois escaladores estavam indo embora - também combinaram com o mesmo
translado que o nosso - para comunicar que ficaríamos mais um dia. Partimos
ligeiros para escalar a agulha Espina que fica ao lado da agulha que tentamos
na investida anterior, porém tudo se repetiu como um disco arranhado. Desta vez
ainda escalamos durante a chuva de granizo acreditando que teria uma trégua ao
fim daquela enfiada, mas não foi o que aconteceu. Descemos com a certeza de que
tentamos de todas as formas, só que a natureza não estava ajudando muito dessa
vez.
Arrumamos as coisas e descemos no dia
seguinte rumo ao Sul. O destino era o mais esperado por todos nós, finalmente
nossa equipe chegava a cidade de El Chaltén no extremo sul da Patagônia. Região
de grandes feitos no montanhismo, incríveis aventuras, inesquecíveis
personagens.
E lá estávamos, dias e dias aguardando a
tão esperada "janela" de bom tempo. A grande fama dessa região é
essa, o normal é ter dias bons entre meses de dias ruins. Enquanto aguardávamos
a janela, aproveitamos para escalar ao redor da cidade, fizemos uma sessão de
boulder com nosso amigo Caio Gomes que foi muito motivante, mesmo em condições
desfavoráveis de frio e vento a gente dava boas risadas entre as tentativas nos
blocos de alta qualidade para a modalidade.
Ainda nessa vibração, escalamos nos
paredões do outro lado do rio. Vias esportivas de qualidade distinta, não pela
dificuldade mas sim pela diversidade de agarras e movimentação. Aproveitamos e
escalamos uma via clássica de três enfiadas de puro desfrute, pena que quando
voltamos nessa via em outro dia quase fomos atingidos por uma chuva de pedras,
algumas grandes como um microondas, ficamos bem atentos dali em diante. De
certa forma serviu para nos lembrar em que ambiente deveríamos sobreviver.
Bernardo Biê escalando nos arredores da cidade de El Chaltén. Foto: Seblen Mantovani/CanalOff..
Assim ela veio pra gente. Não se falava
em outra coisa na cidade senão numa janela de 4 dias que estava por abrir nos
dias seguintes. Traçamos a melhor estratégia dentro do que a gente podia fazer
naquela situação. Foram 10 horas caminhando da cidade até o bivaque conhecido
como "Polacos". Uma caminhada inesquecível de aproximadamente 38km
que passa por bosques, rios, subidas e descidas até o glaciar que fica no Vale
do Torre, um esplêndido corredor de gelo entre o cordão do Fitz Roy e o cordão
do Cerro Torre.
Encontramos os escaladores Eduardo
Formiga e Flavia no meio do glaciar. Eles estavam desistindo da investida por
falta de mantimentos, imediatamente oferecemos tudo que era possível com o que
carregávamos até eles se convencerem a continuar conosco. Dormimos amontoados
no chão ao lado de um bloco de pedra, já que o bivaque "Polacos"
estava lotado por outros grupos de escaladores, resolvemos andar alguns minutos
acima até encontrarmos esse lugar mais protegido do vento. A noite foi um show
a parte, as estrelas cintilavam no céu anunciando que o dia seguinte prometia.
Fizemos uma fogueira com um pedaço de madeira que o Formiga achou no meio do
glaciar. Depois soubemos que outras equipes que estavam dormindo no meio das
grandes paredes viram nossa fogueira ao longe.
Nessas ocasiões é comum não conseguir
dormir, seja por ansiedade ou pelo desconforto. Logo cedo, antes do sol nascer,
o café da manhã já estava pronto e as mochilas fechadas para começar a longa
aproximação até a base da via. A escalada na agulha De La S começa numa
canaleta de gelo com inclinação de 50º, levamos no total 3:30h do bivaque até a
base da via. Como não havia muita neve, pudemos fazer toda a aproximação de
tênis sem precisar de botas e crampons, sempre negociando entre o gelo e a
rocha até a base da escalada. A base da
via Austríaca fica no colo entre a agulha Saint Exupéry e a De La S, dali em
diante começava a escalada em rocha.
Agora, sentindo mais a vontade do que
nunca, escalamos a primeira parte da via que chega a um grande platô onde
caminhando fazemos o link para as enfiadas que levam ao cume da agulha. Uma
escalada linda, diante de um visual hipnotizante. Em pouco tempo chegamos no
pequeno cume da De La S, o dia estava maravilhoso com temperatura amena e a
visibilidade clara. Curtimos alguns minutos ali contemplando as montanhas ao
redor e refletindo sobre tudo que nos levou até aquele momento em nossas vidas,
toda sutileza que nos fez escolher esse caminho na vida até tudo que passamos
nessa viagem para conseguir estar ali no cume.
Bernardo Biê na via "Austríaca" da Agulha De La S, El Chaltén. Foto: Seblen Mantovani/CanalOff..
Depois de um breve momento de silêncio,
nos cumprimentamos felicitando o sucesso da subida e começamos o procedimento
da descida, parte mais perigosa de toda aventura. Em algumas dezenas de minutos
e poucos imprevistos chegamos na base novamente. Descemos ligeiros até o
bivaque onde o grupo se separou, metade resolveu ficar para dormir mais uma
noite no vale, descansando para enfrentar os trinta e tantos quilômetros da
volta, enquanto a outra metade seguiu ao escurecer para tentar chegar na cidade
ainda na madrugada, já que teria show de uma banda local bastante famosa por lá
e seria perfeito para fechar com chave de ouro a empreitada.
Infelizmente nos perdemos no glaciar que
já estava completamente diferente de quando passamos na ida, e com isso
perdemos muitas horas. Cansados acabamos optando por bivacar já quase na saída
para a trilha que nos levaria até o camping De Agostine, onde avançaríamos com
mais facilidade até a cidade.
Silvio Neto e Bernardo Biê em direção ao Glaciar del Torre, com o Cerro Torre ao fundo. Foto: Seblen Mantovani/CanalOff..
Acordamos com outro dia sensacional de
sol, sem vento, temperatura agradável e um céu de brigadeiro. Tomamos café da
manhã e seguimos para a cidade. No meio do caminho encontramos um grupo grande
de escaladores que nos deram uma notícia não muito animadora, eles estavam
organizando o resgate de dois europeus que se acidentaram numa das montanhas do
Vale do Torre. No dia seguinte soubemos que o resgate teve êxito e que os
escaladores acidentados já estavam sob os devidos cuidados.
Fato impressionante e que mexeu muito
comigo, foi perceber que todos na pequena cidade de El Chaltén estão sempre
dispostos a salvar a vidas daqueles que se arriscam nas montanhas locais.
Inevitável refletir sobre a responsabilidade que temos em nos colocar numa
situação perigosa e arriscar a integridade das pessoas que terão de fazer um
resgate, caso seja possível. E como é levado a sério o assunto por lá, ver a
gana e a disposição de pessoas que largam tudo que estão fazendo (trabalho,
família, compromissos etc) e saem
correndo com vontade de salvar a vida de alguém, seja esse alguém merecedor ou
não desse empenho.
Por fim, me senti realizado de ter
conseguido sucesso na primeira empreitada nesse região, além de muito sortudo
por pegar de cara uma janela de tempo bom e poder escalar uma montanha ali.
Apesar disso, tivemos que ir embora no meio de outra janela incrível de 6 dias.
Foi duro ver todos passando com as mochilas para o vale com o brilho nos olhos
de quem está indo de encontro a realização de um sonho, mas foi instantâneo
canalizar essa "inveja boa" emanando boas vibrações, rogando proteção
e sucesso para que tudo corresse bem para todos.
Depois de tantas aventuras pela Argentina: Frey, Tronador, Parede Blanca, Piedras Blancas, Villa Llanquin, Arenales, Chalten e tantas experiências engrandecedoras, pude sentir o quanto a escalada em montanhas pode oferecer a um montanhista em sua existência essencial.
Voltei ao Brasil com a certeza de que é
uma questão de tempo retornar a El Chaltén para mais uma aventura nas belas
montanhas da região!
Por Bernardo Biê
Otimo texto, Li pirando em cada detalhe...
ResponderExcluirBons ventos!
Abraço